RIP Moacy Cirne
Alguns momentos.
Nasci em 1971 e como todos os fãs de quadrinhos de minha geração só fui me aperfeiçoar na década seguinte. Dito isso, nomes como Moacy Cirne e Ariel Dorfman (Para ler o Pato Donald) só entraram na minha vida quando tive a chance de conhecer fãs mais velhos, que já os conheciam.
Nunca conheci o Dorfman, mas o Cirne cruzou minha vida em vários momentos e situações. Lembro de pelo menos três importantes.
Em 1990, eu já estava no Covil e muitos dos nossos membros queriam ser alunos do Ofeliano. Acabamos frequentando a casa dele e conhecendo pessoas do meio de então. A moda da época eram as entrevistas. Numa delas, um dos membros disse que iríamos entrevistar um gênio dos quadrinhos.
Ignorante que só, pensei que se tratava de um desenhista ou roteirista, mas encontrei um senhor de barba branca que havia escrito vários livros teóricos e filosóficos sobre como ler os quadrinhos, um deles, inclusive, havia saído no ano que nasci. Numa conversa de quase três horas, ele falou sobre seus projetos, sua visão dos quadrinhos e outros assuntos que me fizeram sair mais inteligente da conversa.
A vida seguiu, cresci um pouco e comecei a namorar a mãe do meu filho. Ela falava muito do seu professor de histórias em quadrinhos que fazia um fanzine chamado “O Balaio”. Numa das muitas coincidências absurdas que me são comuns, ele me reconheceu e rimos.
Foi umas das muitas vezes que ela ficou surpresa ao descobrir que alguém que ela admirava já me conhecia a alguns anos. E nas várias visitas de um namoro que evoluiu, acabei conversando com o Cirne em várias situações que mais uma vez mudariam minha forma de perceber os quadrinhos.
Cirne era um rato de sebo. Nos encontramos várias vezes e me lembro de duas situações. Em 1998, quando fui trabalhar num sebo e quando estava arrumando uma prateleira com quatro livros dele, ele apareceu em busca de um de seus livros (ele não tinha nenhum) para escrever o de 2001. Mais conversas. Passei a frequentar sua casa e quase fui o digitador do Quadrinhos, Sedução e Paixão (o famoso livro de 2001).
Me separei e perdemos contato. Só fomos nos reencontrar em 2010 quando voltamos a ser vizinhos e ele já estava doente. Frequentávamos os mesmos sebos da zona sul do Rio de Janeiro e sempre encontrávamos alguém do passado. No nosso último encontro ele já estava doente e comentou comigo e Renato Lima que havia passado por um problema sério.
Perdemos contato mais uma vez. Dessa vez pra sempre. Acabei de saber que ele morreu no último sábado (11/1). Infelizmente, estamos falando de Brasil e sabemos que ele teve uma morte dupla: a primeira, a cultural é culpa das editoras que tiraram seus livros de catálogo. Para muitos leitores, o primeiro livro sobre quadrinhos publicado aqui foi o do Will Eisner.
Duas gerações de leitores desconhecem o trabalho não só deste autor como de vários desbravadores que fizeram seus livros com paixão, muitas vezes deixando a técnica de quadrinhos de lado, tendo em vista que eles buscavam referências cinematográficas, uma vez que o formato quadrinhos ainda estava se achando.
Gente como o Cirne é insubstituível, de uma época perdida onde todos eram agregadores e catedráticos que poucos vão saber do que se trata. Uma época mais divertida em que os autores eram politizados e catedráticos que falavam com a mesma naturalidade tanto de semiótica quanto dos trapalhões.
Pessoas que apesar de terem esquecido mais do que muitos do que nós jamais conseguiremos aprender tinham uma paciência sem tamanho para conversar tanto com novatos quanto com seus iguais. Algo que seu perdeu na minha geração.
Minha geração é a última a ter convivido com esses grandes pensadores e temos a responsabilidade de levar seus ensinamentos adiante. Infelizmente, todos estão morrendo e sendo pouco a pouco substituídos tanto por técnicos como por quadrinistas que não veem nada além do seu nicho. Temo pelo futuro dos quadrinhos.
Descanse em paz, Cirne. Obrigado por ter existido. Pena saber que seu coração não aguentou tanta paixão.
RIP Moacy Cirne (1943-2014).
https://impulsohq.com/quadrinhos/rip-moacy-cirne/quadrinhosMoacy CirneAlguns momentos. Nasci em 1971 e como todos os fãs de quadrinhos de minha geração só fui me aperfeiçoar na década seguinte. Dito isso, nomes como Moacy Cirne e Ariel Dorfman (Para ler o Pato Donald) só entraram na minha vida quando tive a chance de conhecer fãs mais velhos,...Alexandre DassumpcaoAlexandre Dassumpção[email protected]ContributorSegundo o Guia do Mochileiro das Galáxias, Alexandre D’assumpção é roteirista, redator, professor de quadrinhos e o que mais precisar ser no momento. Desde 1989 vive aventuras através do espaço/tempo e se tornou mestre Zen na arte de ter um rosto tão comum que todos o cumprimentam pensando ser alguém que conhecem, possivelmente ele mesmo. Dono de uma péssima memória, ele até lembra dos grupos, mas não dos membros. Atualmente sua toalha ostenta a máscara da Iniciativa Gambate, empresa criada para levar cultura onde ela for necessária. O guia também diz que ele dá aulas de quadrinhos para crianças em colégios públicos e para adolescentes e adultos num conhecido curso carioca. De tempos em tempos ele reverte a polaridade de sua chave de fenda sônica para pedir carona no Impulso HQ.Impulso HQ
Cirne foi um MESTRE com maiúsculas: sábio, acessível e gente boa. vai fazer MUITA falta.
descanse em PAZ.
(texto emocionante, Assumpção)
Caríssimo Alexandre, convivi com Moacy Cirne primeiro em seus livros (os mais importantes têm poucas páginas, formato de bolso, concisos mas objetivos tanto quanto ele mesmo se expressava ao vivo), depois pessoalmente: viajamos juntos (o que resultou na minha HQ onde ele é o personagem principal publicada em ELE&ELA – enviei-a ao Renato Lima pra ele postar onde quiser); convidei o Cirne para eventos meus e também fiz com ele uma das mais longas entrevistas de sua vida, 1991, no meu prozine PARÁBOLA. Absolutamente todos que o conheceram morrem um pouco agora junto com ele, vai ser dureza seguir sonhando nossos quadrinhos latinoamericanos sem este pequeno-grande “comandante”.