Do fundo da Estante: MAUS
Esse dias eu li Maus. Havia muito tempo que eu ouvira falar dessa HQ, muito tempo mesmo. Nunca tinha lido, nunca tinha pegado um exemplar nas mãos.
Trabalhei, nos idos de outubro, na HQMix Livraria, ali na praça Roosevelt, foi bem bacana, se me permitem um parênteses: O Gual e a Dani são duas pessoas maravilhosas e apesar da correria que foi fazer tudo, foi lindo demais! Mas divago…
Aí tava por lá, e me apareceu o Maus ali na estante (em inglês – Que trabalho que deu pra ler os nomes das cidades polonesas em inglês!). Peguei e deixei ali, no canto, para ler quando desse. Entre uma coisa e outra, um telefonema e outro eu devorei aquele catatau que é a edição que reúne todo o material em um único volume.
Acho que o título foi uma das coisas que me deram curiosidade para ler, afinal que diabos é “Maus”? O meu conhecimento em alemão é menor que zero, pois seria só pensar um pouco, lembrar que inglês e alemão são línguas parentes, procurar um cognato e chegar a conclusão simples: Maus é Mouse, rato! Que óbvio (obrigado santíssimo Google e sua infinita sabedoria.)
E para quem não entendeu: Rato era como os nazistas caracterizavam os judeus, não era só xingar de rato (o que seria muito simples para o mestre da propaganda): A associação era física e simbólica! Uma caricatura clássica da época (que não encontrei por aqui e não estou a fim de entrar em site nazi para procurar) trazia um judeu contando dinheiro na mesma posição que um rato segura um grão quando come.
A associação como espoliador e ladrão não poderia ser mais clara! Uma exagerada nas feições judias tornava a coisa um tanto quanto mais “crível” e pronto: Judeus são iguais a ratos.
Coisifique, torne menos que humano, menos que gente, torne seu inimigo algo digno de uma morte cruel, digno de Auschwitz-Birkenau! Essa lição todos os líderes bélicos aprederam bem, não? Mas divago…
Beleza, então a gente abre e tem aquela primeira página aterradora: Um menino reclama dos amiguinhos com o pai e ele manda ele se trancar num quarto sem comida com eles, e aí descobrir quem são seus amigos de verdade! @#&*¨Quem fala isso para uma criança? Que pai é esse? Ele não está errado, mas que tabefe! A resposta virá logo: O pai, duro feito rocha, é um judeu polonês que sobreviveu a segunda guerra.
MAIS do que isso: O velho sobreviveu a Auschwitz-Birkenau! Pára tudo que eu quero descer: O véio sobreviveu a isso? E tá ali serrando uma tábua na maior? Eu mal consigo sobreviver a Sé as 18h, esse velho ganhou meu respeito.
E é daí pra frente que a coisa entorna: Um homem bem de vida, trabalhador, bem casado, negociante, vai vendo o cerco apertar, a ratoeira se armar e aos poucos começa se sentir um rato, a viver com ratos. O relato de Vladeck (o pai do autor, o sobrevivente) sobre a vida pré guerra, o amor dele por Anja (a mãe do autor, morta na época que ele escreveu isso) é assombroso pela realidade que ela contém: Ele não é um homem bonzinho, um santo!
Pelo contrário: é mesquinho, egoísta, implicante e racista contra negros! é um homem de verdade, com defeitos, com problemas, com dificuldades de adaptação e cheio de cicatrizes.
Existem algumas coisas de muito, muito bonitas nessa história em meio a tanto horror: O medo do autor de não diminuir, em não retratar com “suavidade” a realidade, a vontade de ser fiel e fazer um bom trabalho resgatando e preservar a memória de um pai que ele não ama, com o qual tem pouco contato e carinho e ainda sim admira profundamente.
O pai ao dar ao filho um relato que devia ser algo mais que doloroso, o relato de fatos que o desumanizaram, que o lezaram extremamente, o relato de atos que ele não se orgulha, de atos que ele fez porque tinha que fazer para sobreviver, porque não houve escolha!
Foi preciso força para sobreviver a isso, e foi preciso muito força para que ele se dispusesse a relembrar e contar tudo isso ao filho (é bonito também que ele prefere falar desse assunto a não ter o filho por perto, para ele é melhor relatar essa dor enorme a perder o pouco contato que tem com o único filho que ele tem). E por último o amor de Anja e Vladeck.
Tudo que esse homem fez pela esposa, tudo o que ele suportou e superou para que sua mulher também sobrevivesse é, no mínimo, heróico. é uma linda história de amor que dá os momentos mais líricos, mais sofridos e mais bonitos do livro todo.
Chorei profundamente ao ler tudo isso, chorei talvez porque aquela história que aprendemos na escola, aquela história que nos dá dados, que nos dá locais e estatísticas se tornou próxima e humana, demasiada humana naquelas páginas.
Não foi fácil concluir a leitura, ao mesmo tempo em que era impossível não ler aquilo até o fim. É uma idéia que de tão simples, tão óbvia de ser feita, só ganhou força com as imagens em preto e branco, com a antropomorfização dos povos ali retratados.
Os ratos retratados nos lembravam o tempo todo o processo todo que desembocou em Auschwitz-Birkenau, que resultou no Holocausto. Nunca entendi o revisionismo e a negação do mesmo, acho um crime terrível fingir que isso não aconteceu!
E imagino como o Vladeck reagiria se alguém dissesse a ele que aquilo ali era tudo mentira, que tudo o que ele passou nunca aconteceu e que ele mentia! As tatuagens em seu braço, as tatuagens em sua memória são prova mais que suficiente para mim.
Maus ganhou o Pulitzer, recebeu reedições e se depender de seu criador nunca será um filme (alguém de bom senso). Maus entra em 10 de cada 10 listas de melhores quadrinhos da história (que não tratem apenas quadrinhos como superheróis ou infantis).
É um senhor livro, uma literatura documental visceral e fabulosa. Mas mais que tudo, maus é envolvente e tocante. Ratos, gatos, cães, porcos, sapos e peixes (cada um representando um povo) se mostram mais humanos que muitas pessoas de verdade que eu venho conhecendo nos últimos tempos.
Maus
Autor: Art Spielgman
Editora Cia das Letras
Pode ser encontrado a partir de R$30,00
296 páginas
Preto e branco
Fácil de encontrar

Olá, Bruno! Bem-vindo ao Impulso, velhinho. Se sua participação aqui for sempre tão boa quanto essa sua resenha de Maus, o Renato já tá muito bem acompanhado. 😉
Cara, eu leio quadrinhos desde ’92, mas somente em 2001 fui ler Maus, e neste dia percebi que eu não conhecia nada de quadrinhos. E, apesar de tudo, só fui ter Maus na minha coleção agora, quando comprei na última Fest Comix. Agora, sim, sou um colecionador e leitor oficial de quadrinhos.
Eu li a graphic há 8 anos e, dos detalhes, claro, pouco lembro, mas a sensação visceral de morte, perseguição, desesperança e medo apresentada em Maus eu nunca esqueci. Spielgman foi genial com este trabalho.
Aliás, a 2ªGM em si já foi uma coisa muito estranha. Parafraseando um amigo; “parece que foi aberto um portal do inferno e dele atravessaram vários demônios”. Acho que dá pra perceber isso muito bem em Maus.
Enfim, Bruno, gostei muito da sua resenha e vou esperar pelas próximas. Abraços!
Oi Bruno! Também gostei muito da sua resenha. E como vc já ouvi falar muito, muito e muito de Maus,e quero muito ler. É fod# lembrar o nazismo, como a ditadura, como ver um estupro, ou mesmo ler a descrição dele. Da até dor de estomago e choramos. E é isso mesmo que vc disse: é lindo quando essas histórias tão terríveis são contadas com arte, sensibilidade…dando a elas a dignidade com que merecem ser tratadas.Só de ler sua resenha foi me dando uma tristezazinha (diminutivo mais como borboletinha, ou seja, sem diminuir ou menosprezar minha tristeza), meio como aquela que sentimos quando vemos “O pianista”, sabe? E eu penso uma coisa que queria te contar. Às vezes quando vou lavar a louça tem um monte de formiga em cima, eu olho aquilo, abro a torneira e vejo todas boiarem na água e depois escorrerem pelo ralo e eu certamene matei tantas formigas, que nunca me atrevo a contar quantas. Não faço nenhuma comparação aqui entre homens e formigas, entre holocausto e dedetização. Poderia fazer, mas precisaria de mais espaço para que não fosse mal interpretada, como eu corro o risco de está sendo agora.É só que quando leio sobre o holocausto ou algo parecido, sempre penso em como ele não é algo do passado, como ele se repete todos os dias e a enorme capacidade que nós, seres humanos, temos de matar-nos direta ou/e indiretamente…
Maus me destruiu muito.
Ao mesmo tempo que me causou muito felicidade.
Tanto que é por causa dele que consegui escrever tudo isso, sem pensar, sem nem mesmo pestanejar
Dói, mas é uma dor boa, que a gent enum pode deixar acabar!
Abraços